O umbigo virado do avesso ("Bicho Geográfico", de Bernardo Brayner)

Vinícius Portella
3 min readJan 15, 2022

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Como escritor não-exatamente-profissional e crítico eventual, admito que me tornei com o tempo um tanto alérgico a livros de auto-ficção e suas variantes (opinião que não é a mais popular hoje). Nenhum assunto ou gênero é inválido, claro que tudo pode resultar em ótimos livros. Mas pra mim, pessoalmente, não há nada que seja menos interessante do que o umbigo dos próprios escritores. Ainda mais num mundo em que todos os meios culturais já se tornaram plataformas de autopromoção e autoempreendedorismo. Autoficção pra mim, enquanto gênero, parece-me pouco mais do que o estado terminal da nossa monocultura hiper-individualista demente, como expresso na literatura.

Existem exceções fortes, claro. Mas a tendência no geral costuma mais me lembrar o que já existe de pior na literatura como instituição: uma tecnologia elitista na sua gênese e individualista na sua própria materialidade, até hoje mais tendente à distinção social abestada e abastada do que a qualquer outra coisa. Ainda mais no Brasil.

Enfim, não é minha praia. E dou essa volta comprida só pra dizer com toda ênfase disponível que o livro de Bernardo Brayner é uma auto-ficção aberta e potente. Uma espécie de ensaio auto-biográfico ilustrado com fotos que se desfaz na nossa frente (como asa de mariposa ao ser tocada), mas cujo gesto retém firme sua força numa forma teimosamente elusiva.

Brayner é livresco, mas não tem aquele cheiro malsão de mofo que sai de um Villamatas (pro meu nariz, ao menos). Tudo está soterrado por citações, por duplos e sombras, naquela verve Mallarmeana de que as coisas existem para desembocar em livro, mas toda permeada de detalhes pontiagudos, de referências doídas, de incongruências cabeludas e frases que viram só pra dar em abismos.

Os signos de literatura, e mesmo as referências obscuras, não vêm pra encher a boca ou pra cumprir tabela. Odradek e Fletcher Hanks (saudoso), Hrabal e Ozu, todos chegam com o mesmo peso de um cachorro falecido ou uma tiazinha que parece com a mãe falecida do autor. É uma colcha de retalhos cheia de furacos, gratuita e arbitrária mas nunca à toa (ou melhor, tão à toa quanto tudo, no seu fundo).

A página com uma lista de endereços falsos e cada vez mais absurdos da editora Penguim é um bom exemplo. Coisa de quem tem carinho pelo livro e seus acessórios contingentes, seus percursos acidentados ao longo da cadeia de transmissão, desde editores até sebos, dedicatórias e máquinas de compressão de lixo. Coisa de quem entende muito bem que livros são também amuletos, objetos concretos e acidentados, com manchas e rasuras, além de serem tijolos palavrosos com fantasmas dentro.

No prefácio do livro (assinado por José Luiz Passos), destaca-se com razão esse caráter fantasmal do livro. Fantasmas andam virando um lugar-comum hoje da arte e da crítica, mas como são particulares os fantasmas de Brayner. São fantasmas que se pegam uns nos outros, que mudam de rosto e de peso. O seu duplo que, num sonho, vira sua própria mãe, que vira uma memória alheia, que vira uma citação abstrusa.

Pra não ficar só nos afagos, a fragmentação e os tantos caminhos que dão em falso cansam um pouco, pelo ar continuamente rarefeito. Ainda assim, o livro sabe se encerrar, e não se alongar além da conta (segundo o posfácio, isso é mérito do editor Antônio Marcos Pereira, que desmembrou o manuscrito em três livros distintos, dois ainda a aparecer).

Conheci Bernardo há anos numa defunta comunidade literária (hospedada numa plataforma já moribunda na época). Não somos exatamente próximos, mas já sabia do seu talento por causa do seu blog “Livros que você precisa ler”, um experimento Borgeano que deve ser das melhores coisas da dispersa literatura online brasileira. Aqui ele finalmente tem espaço pra brincar, e mostrar a que veio. Esperemos que venha mais.

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Vinícius Portella

Escrevo ficção e crítica, tenho coisas publicadas por aí e um canal semi-morto no Youtube. zumbipacas1 no Twitter, ndrsp no IG.